A FÉ NA PRIMOROSA
OBRA CHAMA VIVA
Ao celebrar a festa de São João
da Cruz, neste dia, queremos agradecer a Deus, que em sua suma bondade e amor
nos concedeu a graça de termos como reformador do Carmelo Descalço, ao lado de
santa madre Teresa de Jesus, este mestre na fé e na vida interior. Sobretudo,
agradecermos e rogarmos que ele, o santo da Chama Viva de Amor, como pai na fé sempre
nos inspire a buscar em suas inefáveis obras, a doutrina do caminho de subida
ao Monte que é o próprio Jesus Cristo, Filho de Deus.
Ao longo de nove dias, meditamos
o “Mistério do Amor Trinitário”, deixando-nos conduzir para o sentido de
retorno ao “essencial” de nossa vida cristã-carmelita, e à essência de nosso
carisma. O intuito esteve e permanece sendo o fortalecer nossa identidade, para
assim dar respostas concretas às motivações da doutrina que norteiam nossa fé e
nosso chamado, “Vivemos numa época, que alguns compararam ao exílio. Como
Israel, que nesse período de sua história se encontrou despojado de todas as
suas seguranças: o templo, lugar da presença de Deus (...) ponto de referência
de sua identidade como nação (...) também, perdemos muitos pontos de segurança
que tínhamos num passado próximo. Deu-se lugar à busca, à incerteza, à
pluriformidade, ao desconcerto”. (Voltar ao Essencial. Documento Capitular,
2003)
Aqui pretendemos adentrar na
primorosa obra do santo, que é Chama Viva de Amor, por acreditar que também São
João da Cruz alegrava-se intimamente lendo-a, também por perceber que nesta,
como também no Cântico Espiritual, está a mais límpida e clara retratação de
sua alma; talvez porque eram os livros espirituais que mais bem lhe faziam, que
melhor podia pô-lo mais em contato com Deus, como aquelas páginas de seu espírito.
São João realizou esta redação nos últimos anos de sua vida, quando mais do que
nunca era "celestial e divino", redação dedicada a sua filha
espiritual Dona Ana de Peñalosa. Ao ler esta última obra de São João da Cruz,
podemos pensar que estamos presenciando a glorificação de sua alma divinizada.
O céu parece abrir-se e vislumbramos a glória de que será inundada na outra
vida, face a face com a Santíssima Trindade, a alma que aqui amou a Deus sobre
todas as coisas. Poderíamos dizer que a "Chama" é a epifania desse
mistério sobrenatural, que os olhos não podem ver, nem ouvidos ouvir e que só o
coração sente e conhece: o mistério da transformação da alma na Santíssima
Trindade. O Senhor generosamente o antecipa a quem, como São João da Cruz,
renunciando a tudo, Sabe esperar tudo do Tudo.
“Não é para admirar faça Deus, tão altas e peregrinas mercês, às almas
que lhe apraz regalar. Na verdade, se considerarmos que é Deus, e que as
concede como Deus, com infinito amor e bondade, não nos há de parecer fora de
razão”. Suas próprias palavras nos afirmam que se alguém o amar, o Pai, o Filho
e o Espírito Santo virão fazer nele sua morada (Jo 16,23).
(Prólogo2)
A Trindade é um mistério de fé em
sentido estrito, um dos «mistérios ocultos em Deus, que não podem ser
conhecidos se não forem revelados lá do alto». Os cristãos são batizados «em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). Batizados
«em nome» do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e não «nos nomes» deles porque
não há senão um só Deus – o Pai Omnipotente, o Seu Filho Unigênito e o Espírito
Santo: a Santíssima Trindade - centralidade mistérica da fé e da vida cristã,
sendo o mistério de Deus em si mesmo, a fonte de todos os outros mistérios da
fé e a luz que os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na
«hierarquia das verdades da fé». (Cf. CEC 237.232-234).
A concepção de Deus expressa em Chama viva de amor assume
o sentido trinitário. Enquanto em Cântico espiritual, insiste-se na
união com o Verbo, Filho de Deus e em Subida do Monte Carmelo, na
imitação de Cristo, Chama viva de amor se centra na atuação da
Santíssima Trindade junto à alma em seu processo de união mística: “Não havemos
de considerar inacreditável que a uma alma já examinada, provada e purificada
no fogo das tribulações e trabalhos, e por grande variedade de tentações, e
achada fiel no amor, seja recusado nesta vida o cumprimento da promessa feita
pelo Filho de Deus quando disse: se alguém o amasse, a este viria a Santíssima
Trindade para estabelecer nele a sua morada (Jo 14,23). E isto significa para a
alma ter o entendimento divinamente ilustrado na sabedoria do Filho, a vontade
inebriada de deleite no Espírito Santo, absorvendo-a o Pai, forte e
poderosamente, no abraço e abismo de sua doçura. (Ch 1,15). Portanto, achamos
em Chama Viva de Amor muitos elementos doutrinais repetidos, ou resumidos de
Subida e de Noite Escura; também, a doutrina da noite, a doutrina da passagem
da meditação para a contemplação. Isto acontece principalmente em Chama 3.
"Oh! Lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
que estava escuro e cego,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!"
(Canção 3)
A partir dos estudos de Karol
Wojtyla, nosso São João Paulo II, em Chama 3 pretendemos reconhecer pontos
importantes sobre a fé na primorosa obra do santo padre João da Cruz. Pois,
através desta obra torna-se fácil reencontrar a profunda teologia sanjoanista
da fé. Por exemplo, em Chama 3,48 nos diz: "Deus, a quem o entendimento se
encaminha, excede ao próprio entendimento; e assim é incompreensível e
inacessível ao entendimento; portanto, quando o entendimento vai entendendo,
não vai se aproximando de Deus, antes vai se afastando. E assim, antes se há de
afastar o entendimento de si mesmo e de sua inteligência para se aproximar de
Deus, caminhando na fé, crendo e não entendendo. E dessa forma o entendimento
chega à perfeição, porque pela fé e não por outro meio se une a Deus [...]. E o
ir adiante o entendimento é caminhar cada vez mais na fé, e assim é caminhar
mais na obscuridade, porque a fé é trevas para o entendimento". E,
portanto, é necessário "que não se empregue em inteligências
distintas".
O DOM DE DEUS:
"DÁ A DEUS O PRÓPRIO DEUS EM DEUS".
A alma age "em Deus por Deus
do mesmo modo que Ele age nela por si mesmo, do modo que Ele age, porque a
vontade dos dois é uma só, e assim a operação de Deus e a dela é uma só".
(Ch 3,78) São João nos esclarece: "[...] sendo ela sombra de Deus por meio
desta transformação substancial, age ela em Deus por Deus do mesmo modo que Ele
age nela por si mesmo, do modo que Ele age, porque a vontade dos dois é uma só,
e assim a operação de Deus e a dela é uma só. Logo, como Deus se dá a ela com
livre e graciosa vontade, assim também ela, tendo a vontade tanto mais livre e
generosa quanto mais unida a Deus, faz o dom de Deus ao mesmo Deus em Deus, e
esta dádiva da alma a Deus é total e verdadeira. Porque a alma vê então que
Deus verdadeiramente é seu, e que ela o possui com possessão hereditária, com
direito de propriedade, como filha adotiva de Deus, pela graça concedida por
Ele ao dar-se a si mesmo a ela, e que, como coisa sua, o pode dar e comunicar a
quem ela quiser, por sua livre vontade; assim a alma o dá a seu querido, que é
o mesmo Deus que se deu a ela, e nisto paga a Deus tudo o que lhe deve,
porquanto voluntariamente lhe dá tanto quanto dele recebe". (Ch 3,78) Toda
esta concepção relacional se fundamenta sempre em um duplo elemento: a
comunicação da graça e a força do amor. A alma se faz "Deus por participação",
e então possui participativamente a Deus, e retribui à vontade, em recíproco
amor, o que do Amado recebeu: o dom de Deus: "dá a Deus o próprio Deus em
Deus". O sopro do Espírito Santo é quase contínuo no estado de
transformação.
O DOM DE DEUS:
"DÁ A DEUS O PRÓPRIO DEUS EM DEUS".
Que dá a alma a Deus? Responde-nos
o santo: "[...] sendo ela sombra de Deus por meio desta transformação
substancial, age ela em Deus por Deus do mesmo modo que Ele age nela por si
mesmo, do modo que Ele age, porque a vontade dos dois é uma só, e assim a
operação de Deus e a dela é uma só. Logo, como Deus se dá a ela com livre e
graciosa vontade, assim também ela, tendo a vontade tanto mais livre e generosa
quanto mais unida a Deus, faz o dom de Deus ao mesmo Deus em Deus, e esta
dádiva da alma a Deus é total e verdadeira. Porque a alma vê então que Deus
verdadeiramente é seu, e que ela o possui com possessão hereditária, com
direito de propriedade, como filha adotiva de Deus, pela graça concedida por
Ele ao dar-se a si mesmo a ela, e que, como coisa sua, o pode dar e comunicar a
quem ela quiser, por sua livre vontade; assim a alma o dá a seu querido, que é
o mesmo Deus que se deu a ela, e nisto paga a Deus tudo o que lhe deve,
porquanto voluntariamente lhe dá tanto quanto dele recebe". (Ch 3,78)
"A COMUNICAÇÃO
DA GRAÇA E A FORÇA DO AMOR"
Na concepção relacional, filial e
conjugal ao mesmo tempo, se fundamenta sempre em um duplo elemento: a
comunicação da graça e a força do amor. A alma se faz "Deus por
participação", e então possui participativamente a Deus, e retribui à
vontade, em recíproco amor, o que do Amado recebeu: o dom de Deus: "da a
Deus o próprio Deus em Deus". O sopro do Espírito Santo é quase contínuo
no estado de transformação. De fato, quem dá é a alma, incendiada pelo sumo
amor; já unida a Deus plenamente, não pode fazer outra coisa senão aquilo que
faz a vontade divina. Por conseguinte, por todo seu ser não corre mais do que
amor, e só se ocupa em amar uma vez que chegou à perfeição de união
transformadora, igual à vontade divina; amar a Deus, devolvendo-lhe amor por
amor - o amor participado ou recebido - de modo divino, sob a moção do Espírito
Santo. Estamos dentro da mística 'trinitária', que já havíamos vislumbrado em
Cântico: "[...] o Espírito Santo [...] com aquela sua aspiração divina
levanta a alma com grande sublimidade e a informa e habilita para que ela
aspire em Deus a mesma aspiração de amor que o Pai aspira no Filho, e o Filho
no Pai, e esta aspiração é o próprio Espírito Santo que também aspira a alma,
no Pai e no Filho, na dita transformação, para uni-la consigo". (Cântico
39, 3)
TRANSFORMAÇÃO DO ENTENDIMENTO,
VONTADE E MEMÓRIA EM CHAMA.
As frases transcritas foram
tiradas do texto maior, no qual descreve detalhadamente a união, consumada na
transformação do entendimento, vontade e memória. Conserva aqui a divisão
tripartida que já conhecemos. Mas, se compararmos este texto com o de Noite
Escura II 4,2, que já submetemos a análise, o de Chama é muito mais forte e
expressivo; na realidade, anuncia a união consumada e não só sua dolorosa
preparação através da noite purificadora. Porém, estamos ainda no caminho, e
por isso na área da fé. Devemos recordar para não perder de vista as
suculentíssimas palavras: "pela união seu entendimento e o de Deus é todo
um só". E talvez não seja supérfluo recordar também o que diz me Subida II
29,6 acerca da moção do Espírito Santo e o que declara em Cântico sobre a
"substância apreendida", que o entendimento possível experimenta e na
qual goza e descansa.
METÁFORA DAS CAVERNAS. Citemos,
por último, a seguinte passagem, que nos explica a metáfora das 'cavernas':
"Estas cavernas - diz - são as potências da alma: memória entendimento e
vontade; as quais são tanto mais profundas quanto mais capazes são de grandes bens,
pois não se enchem com menos que o infinito. Pelo que elas padecem quando estão
vazias, podemos avaliar, de certo modo, quanto gozam e se deleitam quando estão
cheias de Deus, pois por um contrário se esclarece o outro. Quanto ao primeiro,
notemos que estas cavernas das potências, quando não estão vazias, e
purificadas, e limpas de toda afeição de criatura, não sentem o grande vazio de
sua profunda capacidade". (Ch 3,18)
"A ABERTURA DA
ALMA AO INFINITO"
Que profundidades do espírito
humano! Capacidade imensa das potências superiores, capacidade do infinito: eis
aí a raiz e o fundamento metafísico que serve de sustento às virtudes
teologais! Porém é necessário, para que se dê essa união com o Infinito, que
primeiro a almas e purifique e se despoje de todo o finito, limitado,
particular e distinto. A abertura da alma ao Infinito constitui a tarefa
peculiar das virtudes teologais que, ao mesmo tempo, enchem a alma da Divindade
participada. A doutrina fundamental do Doutor Místico sobre as virtudes teologais,
exposta em Subida II 6, corresponde a este conceito das potências: devem se pôr
em 'vazio e trevas' para unir a alma a Deus. A purificação se ordena à união. E
nela está se personificando o princípio da Subida I 4, que afirma a
impossibilidade de que duas formas totalmente diferentes coexistam ao mesmo
tempo em um sujeito. O entendimento é abismo profundo, "caverna"
sedenta: " [...] seu vazio é sede de Deus, e esta é tão grande quando o
entendimento está disposto, que Davi a compara à do cervo [...]; e esta sede é
das águas da sabedoria de Deus, que é o objeto do entendimento". (Ch 3,19)
Já dissemos em outro momento, e
voltamos a repetir que, Chama Viva é a epifania do mistério sobrenatural
escrito e inspirado a São João da Cruz, que os olhos não podem ver, nem ouvidos
podem ouvir, e que só o coração sente e conhece (cf. Is 64,4), que é o mistério
da transformação da alma na Santíssima Trindade. O Senhor generosamente o
antecipa a quem, como São João da Cruz, renunciando a tudo, sabe esperar tudo
do Tudo. Que do vale de nossa miséria, sintamos a atração dos altos cumes, por
onde passeia o espírito do místico carmelita, encerrando e fazendo de nossa oração
o poema de São João da Cruz:
Canção I
Oh! Chama de amor viva
que ternamente feres
De minha alma no mais profundo
centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! Rompe a tela deste doce
encontro.
Canção II
Oh! Cautério suave!
Oh! Regalada chaga!
Oh! Branda mão! Oh! Toque
delicado
Que a vida eterna sabe,
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás
trocado.
Canção III
Oh! Lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
que estava escuro e cego,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu
Querido!
Canção IV
Oh! Quão manso e amoroso
Despertas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gostoso,
De bens e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras!”
Oração: Ó Deus, que inspirastes
ao presbítero são João da Cruz, nosso pai, extraordinário amor pelo Cristo e
total desapego de si mesmo, fazei que, imitando sempre seu exemplo, cheguemos à
contemplação da vossa glória. Por nosso Senhor Jesus Cristo vosso Filho, na
unidade do Espírito Santo. Amém!
SANTO PADRE JOÃO DA CRUZ,
intercedei por nós!
Estela da Paz.
(Estela Maria Teresa
de Jesus, OCDS)
Comissão de História
Comissão de
Espiritualidade
Ref.:
Karol Wojtyla A DOUTRINA DA FÉ SEGUNDO SÃO JOÃO DA CRUZ.
Tese: L.2, C.2.
Catecismo da Igreja Católica.
Bíblia Sagrada.
“Ser carmelitas
Descalços hoje”. Declaração carismática, 2019.
CAPÍTULO GERAL DOS CARMELITAS DESCALÇOS. ÁVILA –
17 de maio de 2003. "Em Marcha
com Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz". Voltar ao Essencial. Documento
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